Eles tinham se encontrado da pior maneira possivel. Calor arrasador,
tristeza palpável. O choro mais urgente se ouvia em uma e outra parte da
igreja, a morte do amigo comum tinha sido repentina e fria.
Todos estavam inconformados com a crueldade que tudo tinha transcorrido.
As discussoes sobre a violencia urbana, porte de arma, vingança, incompetência
pública animavam algumas rodas. Todos tinham as respostas. Todos poderiam ter
evitado aquilo. Pelo menos teoricamente.
Raquel sabia da possibilidade de encontrá-lo, e seu estomago se
contorcia. Não da maneira prazerosa de antes. Antes de tudo acabar. Mas havia a
torcida que ele estivesse fora da cidade, e os rumores fossem verdade. Casado,
longe dali.
Sentiu um aperto na mão, sua prima querendo lhe tirar da estratosfera.
Lilian estava ali para aquilo certo? Apoio moral e não deixá-la passar
vergonha. Sentiu os olhos verdes tão familiares que queriam lhe transmitir toda
a segurança possível. Acenou com a cabeça, ela estava bem. Estava bem. Continue repetindo.
Tanta coisa na sua cabeça, tanta inconformação de como o mundo seguia. Alguém
que tivesse clemência e parasse esta porra porque ela não aguentava mais. Aquela
sensação de impotência. E era ainda maior pelo temor de encontrá-lo. Seu irresistível
sorriso, seus braços tatuados, seu cabelo rebelde, o bronzeado que lhe cobria
toda a pele. O gosto de sal.
Deixou o ramalhete de margaridas no peito do amigo. Pálido. Rígido.
Ausente. Afastou aquela dor ao lembrar-se de como o tinha conhecido, como tinham
passado tantas coisas juntos. Todos os mochiloes, todas as aventuras. Cada foto
tirada juntos. Felipe sempre lhe arrancava gargalhadas. Sempre. E agora... Não
mais. Lágrimas.
Quem iria lhe fazer os melhores mojitos, deixar-lhe uma sacola de livros
toda a sexta, chamar-lhe de “chica”,
e ter discussões incansáveis sobre a falta de sentido nos partidos políticos e o
último filme de Anne Hathaway na mesma festa? Ela nem lhe devolvera seu Jean
Hatzfeld. Como ela devolveria agora? Não conseguiu evitar o som vindo da sua
garganta. Não mais.
Passou a mão sobre o rosto do amigo saiu antes de perturbar a família
com o seu pesar e sentiu uma mão no seu ombro. Não precisou virar, conhecia
aquele toque.
Ali estava Gustavo com uma face apreensiva, sem saber o que dizer e nem
como agir com ela. E ela sabia? Era o mesmo, e não era. A única coisa certa era
que eles não eram.
- Eu não...
- Nem eu...
O que seja que eles quisessem dizer.
A mão dele ainda repousava no seu pulso, num contato incomodo que ela
cortou disfarçando que arrumava o cabelo. Sua prima olhou feio para a cena e
trocaram mensagens daquelas telepáticas; não, ela não precisava interferir e
arrancar os órgãos internos dele. Estava sob controle, ou pelo menos ela dizia
isso a si mesma.
Via como ele observava seus cabelos, estavam mais escuros e compridos desde
a última vez que se viram, Raquel sabia como ele gostava de tocá-los, viu nos
olhos dele que isso não mudara. Nem a maneira como ele reconhecia cada curva do
corpo dela. E com certeza, tentava fazê-lo com prudência, mas a moça reconhecia
o desejo dele. Como se ele quisesse mais uma vez lamber a pele de chocolate
dela. Era como tentar não olhar um acidente na rodovia. Impossível.
Pensou que ouviu que o rapaz lhe contava sobre seu novo trabalho, e a cidade
onde vivia agora, mas ficou pensando porque tinham que travar aquela conversa
trivial. Queria saber algo dele? Ela não tinha cortado os laços, proibido os
amigos de lhe mencionarem, os lugares em comum, sumido com as besteiras que lhe
lembravam dele... Como se ele nunca tivesse passado em sua vida. Ela não queria
saber. Era dele a curiosidade.
Por que ele falava dos filmes que tinham combinado ver juntos? Ou dos
lugares que tinham visitado juntos? Ou de suas piadas intimas? E aquilo progredia sobre o brilho dourado repousado
sobre o dedo anular dele. Era verdade. Mas não mencionara nada, nem ela.
As lágrimas vertidas podiam ser confundidas por aquelas ao amigo que
jazia a poucos metros. Não eram apenas de tristeza, eram de raiva também.
Com aquele pensamento na cabeça nem percebeu quando ele lhe perguntou
sobre sua vida, soubera que ela fora para a França, conseguira a bolsa e
terminara seu mestrado como planejado... E ela fez de conta que tudo ia bem, que estava
animadissima, que tinha vivido coisas inacreditaveis, que sua vida era uma tremenda
aventura. E de repente parou e pensou
que não era um conto, era verdade, sentia-se bem. E isso foi algo tão
insultante, ela não sabia para quem, mas era. Era feliz sem a sombra ele, e por
mais que quisesse que aquela aliança fosse a mesma que tinham escolhido uma
vez, ela era mais feliz sem ele.
Mas algo amargo vinha com aquela realização. Ele ainda ecoava no seu coração,
não como antes, de outra forma, algo diferente. Não sabia definir.
Pelo menos, ela tinha escolhido aquele vestido lilás, algo de confiança
surgia nela. Ela estava bem. Tinha sobrevivido,não ia encontrá-la numa síndrome
pós-guerra. Pior que encontrar um ex-, num funeral, era encontrá-lo no fundo do
poço. Sim, o esmalte nas unhas ao menos sinalizava amor próprio.
Sentiu os dedos dele que lhe limpavam o rosto, e um sorriso... O mesmo
que muitas vezes tinha lhe roubado as forças dos joelhos... Os olhos azuis
marotos que lhe observavam com doçura como da primeira vez que dançaram juntos.
Agradeceu pelos óculos escuros que lhe escondiam. Se não, teria visto a
surpresa/temor/saudade que aquele gesto lhe despertou.
- Não...-falou o mais firme que pode-... Não, Gustavo.
- Por que?...-pensou fingir que não era nada-...E você nunca me chamou
de Gustavo...
- Porque aqui não é o lugar para eu perder a minha paciência com você...
E Gustavo é teu nome... –procurou se afastar-... Você está fazendo de novo...
- Você vai começar de novo... –ele a seguiu.
- Sim... Todas as vezes que você fizer... Sim... –e aquele dia tinha que
ser quente assim ainda?
- Você falou que podíamos ser amigos, meu anjo...
- Amigos...-e tentou não pensar nele a chamando de anjo-... Você não
sabe o que isso significa. Você tem uma aliança no dedo, ela está aqui? –uma
sombra de arvore qualquer os saudava.
- Sim. –falou sem emoções ao certo.
- Ainda pior. –falou com todas as emoções erradas.
- Não é assim.. –ele secou o suor da testa.
- É bem assim... Ja estive no lugar dela.
- Você nunca esteve no lugar dela. Você...
- Eu sei... –disse com o significado que entendera-...Mas fui tua noiva,
e você não soube o que isso significava... Você quis o fim. Então...-prendeu o
cabelo desajeitadamente.
- Não era disso que dizia...
- Era o que?
- Nada.. Não importa.. –ela nunca entenderia.
- ...Então.. me deixe em paz.. –controlou-se para não levantar a voz.
- Eu não fiz isso? –buscou alguma ajuda ali, não sabia o que fazer perto
dela.
- Não... –falou irritada.
- Não? –tinha raiva na voz.
- Não quando a todo o momento você tem que relembrar da gente. Coisas
nossas... Você não quer deixar o pó cobrir o passado... E já não existe futuro
para a gente. Pare.
- Não se pode ignorar que nós tivemos um passado... Isso é totalmente
sem sentido...
- Como deve ser com qualquer passado assim... Não há como fazer diferente,
ele está enterrado...
- Você está vendo coisas onde não ha nada. Apenas queria te tratar
bem.Você é alguém especial para mim.
- Ou você não percebe o que está fazendo... Ou você é um puto filho-da-mãe!
- Mas se você se sente assim... É melhor... –ele falou furioso agora.
- É.. é melhor. –ela travou o maxilar numa luta interna.
Um olhar. Quanto tempo? Séculos? Sim, um olhar que durou mais que se
pode prender a respiraçao por. E tudo aquilo que podia ser, tudo que não
aconteceu porque faltou tudo que não podia faltar.
E então, nada. A morena viu as costas dele que se distanciavam. Sentiu
os joelhos falharem. Não como antes. Antes de tudo aquilo ter se quebrado em
zilhoes de pedacinhos. Quantas vezes alguém pode torcer tua alma? Quantas vezes
alguém pode pedir perdão pela mesma coisa?
Chega um ponto num relacionamento que você está sempre sozinha montando
aqueles zilhoes de pedaços, que você tem que decidir se quer isso para sua
vida. Fechar os olhos ou usar as pernas. Raquel tinha usado a boca para mandar
Gustavo para o inferno, e saiu do apartamento deles usando seu par de saltos
preferido.
Fazia algumas horas que nem lembrava mais daquele encontro. Ou ao menos
tentara. Até seu IPhone sinalizar.
“There are places I will remember all my life…”
Dele.
Puto trabalho que ele deve ter passado para achar o numero novo dela.
Ainda mais com a mulher a tira colo.
Mais uma memoria. Como se ela não soubesse aquela musica de cor. Ou ele.
Uma dor. Uma dor bem lacerante. Sabia muito bem como aquela musica
significava, como acabava. Que porra ele queria?!! Não queria nada, mas também não
queria deixá-la seguir.
Filhos da puta de todos os homens que precisam desta pseudo segurança. Não
sabe o que querem. Querem tudo. E te sujeitam a isso. Merda. Querem você ali,
em coleira curta para qualquer coisa. Um bote salva-vidas!
Ela sorriu.
“yeah it makes me smile, yeah it makes me smile”
E enviou sem segundos pensamentos.
Vamos brincar também com a cabeça
dos outros, ela pensou.
Gustavo nunca tinha gostado de pop mesmo, a eclética da relação sempre tinha
sido ela. Em todos os quesitos. Sempre flexível, sempre comportando todos os
gostos, taras e desmandos dele.
Gostaria de ver a cara dele quando juntasse as peças, e achasse aquela
musica. Mas... Isso pode demorar.
“Beatles acabaram há algumas
décadas. Sugiro Lily Allen.”
E orriu, pegou o copo de cerveja gelada e levou aos lábios podendo ouvir
o ritmo da música na sua cabeça.
Voltou à atenção para a conversa na mesa com os amigos e olhou tudo a
sua volta e sorriu. Lilian contava uma história de como Felipe tinha lhe
salvado de um cara numa festa de carnaval, havia uma tristeza permanente no
rosto de todos, mas uma risada surgiu de cada um com o final. Ele tinha sido o
melhor em arrancar gargalhadas. E eles iam sentir tanto sua falta.
A prima passou o braço sobre seus ombros.
- Era ele, não? –sussurrou e Quel concordou- ...Idiota.
As duas trocaram um olhar de comparsas e riram, balançando as cabeças em
uníssono.
Não era um faz de conta. Ela era feliz sem ele. Não lhe permitia roubar
sua vida de novo.
Ela olhou para o horizonte.
E isso era bom. Muito bom.
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